Evento marca um novo momento no resgate da memória e das raízes indígenas na moda do Amazonas

Mauricio Duarte SPFW N55 Foto: Ze Takahashi / @agfotosite

A primeira edição do Amazon Poranga Fashion teve início na última terça-feira (06/06), no Centro Cultural Povos da Amazônia. Com acesso gratuito, a programação conta com oito oficinas, mesa redonda, três desfiles e palestras, além de exposição e diversas apresentações culturais, o evento acontece em Manaus e em Parintins.

Nomes renomados no mercado nacional e internacional da moda são amazonenses e integram a iniciativa que marca um novo momento no cenário artístico e criativo do Estado, no qual a memória e o resgate das raízes indígenas ganham destaque e impulsionamento para integrar também uma cadeia de empreendedorismo sólido.

Considerando o Amazonas o território onde há maior concentração de povos originários, o Amazon Poranga Fashion, para o estilista amazonense Maurício Duarte, representa um divisor de águas.

“A inquietação para criar o Amazon Poranga Fashion é de olhar e falar: Se em São Paulo eles estão olhando pra nós, quando vamos impulsionar esse movimento? O evento está nascendo para que a gente tenha um calendário anual que desenvolva atividades como essa primeira experiência que está acontecendo, dividida em vários espaços: no Icbeu (Instituto Cultural Brasil Estados Unidos), no Centro Cultural Povos da Amazônia, na faculdade Santa Tereza”, explica o artista.

Talento Amazonense

Maurício Duarte estudou Corte e Costura em Manaus, em seguida ingressou na faculdade de moda também na capital amazonense e continuou sua formação no ensino superior em moda em São Paulo.

“Falar de povos originários, falar da gente é justamente entender que por muito tempo a gente não se reconhecia, não falávamos sobre a nossa luta, não tínhamos impulso pelo Estado para que reconhecessem e olhassem essa população que em sua grande parte é composta por indígenas, ribeirinhos e quilombolas”, conta Maurício.

O artista iniciou sua trajetória há mais dez de anos junto com sua mãe, participando de feiras de artesanato. “Fiz oficinas, cursos oferecidos pelo Cetam, Senai, comecei pintando peças antes de costurar e naquele momento eu percebia que precisava falar sobre o meu lugar de origem então eram camisetas de arara, tucano, enfim.. elementos da fauna”, lembra o estilista. 

Maurício é do povo Kaixana e fundou sua própria marca, a Maurício Duarte Brand. Em 2022 foi o primeiro estilista do Amazonas a participar do São Paulo Fashion Week. Em novembro de 2022, realizou um desfile digital no maior evento de moda do país e, em maio de 2023, apresentou presencialmente a coleção “Teias”, sendo destaque de público e crítica especializada em moda.  

A coleção “Teias” demarca uma continuidade dentro de um processo artístico e originário. “O movimento em Manaus só vai acontecer quando todas as pessoas que fazem o mesmo trabalho entenderem que elas não são concorrentes, a gente precisa unir forças para eventos como o Amazon Poranga Fashion, quando a gente entende que uma marca precisa da outra é aí que conseguimos caminhar em teias, numa construção coletiva”, destacou o estilista. 

“A moda é um ambiente de economia criativa, um caminho de economia circular e também de valorização dos trabalhos indígenas, estamos falando de estilistas que representam suas etnias. Assim como a música, as artes plásticas, a moda também pode criar um caminho de ocupação em espaços culturais”, defende. 

“Dentro dessa coleção havia um look feito com a técnica da cestaria com 98 centímetros de comprimento feita de arumã por um artesão de São Gabriel da Cachoeira”, reforçou Maurício destacando que a moda é arte e também deve ser vista em exposições, galerias de arte, entre outros espaços. 

Letramento Étnico-Racial

Com 25 anos de idade, o designer de moda Siodohi atribui ao seu trabalho um caráter de demarcação. Enquanto linguagem artística que trabalha com a elaboração de significados a moda influencia a maneira como se enxergar e se posicionar no mundo, para Siodohi, existe um efeito dessa construção na identidade dos povos indígenas.

“Minha trajetória dentro da moda vem com a contação de história, da nossa própria história, por nós mesmos, enquanto indígena Piratapuya, do território do Alto Rio Negro, eu compartilho a minha vivência e os desafios que nós passamos por meio das minhas criações, por meio dos fashion films”, destaca o estilista que também exibe uma de suas criações audiovisuais durante o evento. 

As falas trazidas pelo artista e as presenças em suas coleções se tornam materiais atemporais, que traduzem uma luta contínua, que saem dos seus territórios e ganham as passarelas.

“Além da questão do design, penso nas peças em acabamento de alfaiataria, penso na moda gênero, nesse lugar também do conforto das peças e na pesquisa tecnológica e ancestral, a exemplo: utilizo corante a base da casca de mandioca”, o artista complementa ressaltando que apesar do momento delicado que a população indígena vive desde a colonização, a arte e a moda se tornam plataformas para o continuidade dos sonhos de manter vivo o conhecimento, a história e a identidade indígena.

Para Siodohi ter a posse de informações e conhecimento se torna um diferencial para o impacto e o propósito da moda indígena. “É preciso entender que nem tudo é vendável, a moda é a queridinha do capitalismo, então a gente precisa estar atento até que ponto a nossa moda vai caminhar no comércio, até que ponto nosso ativismo tende a se limitar apenas a negócios. A partir disso, é muito importante, é claro, a gente pensar num cenário da moda que respeite os direitos humanos”, pontuou. 

Considerando os povos indígenas como pessoas genuinamente periféricas, o artista menciona o escritor e líder indígena Ailton Krenak. “Estamos na periferia do mundo, agarrados à beira de rios e oceanos e, muitas vezes, esquecidos”., opina.

“Somos mais de 300 povos indígenas, nossa geração tem uma corresponsabilidade para lutar contra o movimento da antiga visão da moda, da superficialidade como ela foi constituída, como realmente uma forma de diminuir a massa e tentar ser superior a outras pessoas. É uma luta de ego no cenário da moda, então, precisamos ter cuidado para não perder nossas raízes, nossa base”, explicou o designer.

O fluxo de sair do Amazonas para buscar visibilidade e, só depois disso, conseguir atrair atenção e interesse local é visto como problemático para Siodohi, que enxerga eventos como o Amazon Poranga Fashion oportunidades de reverter essa lógica. “É o momento de trazer essa pauta olhando para os erros do passado, tentando ver para onde estamos caminhando agora e ver os cenários que virão pela frente no futuro”, finalizou.

Mulheres e Moda Indígena

A trajetória do Ateliê Derequine, localizado no bairro indígena Parque das Tribos, Zona Norte de Manaus, tem como ponto central a independência financeira e inovação criativa de mulheres indígenas das mais diversas origens do Amazonas, já que o bairro possui mais de 30 etnias diferentes entre as mais de 800 famílias que ali vivem. 

Foi nessa comunidade que Vanda Witoto impulsionou uma cadeia de mulheres a costurarem e encontrarem no empreendedorismo um futuro profissional. A professora, técnica em enfermagem e líder socioambiental, comenta que o evento Amazon Poranga Fashion coloca em um local de protagonismo mulheres como ela.

“É mais um projeto que visa a valorização da nossa cultura e trazer sobretudo os corpos indígenas para essa passarela. É maravilhoso trazer os corpos amazônidas para esse espaço. É importante que o Amazonas, que produz moda, seja protagonista desse processo”, destaca.

Ainda sobre a necessidade de visibilidade no Amazonas, Vanda destaca a importância da iniciativa. “A gente precisa sair daqui pra tentar mostrar nossa arte pra fora e depois retornar pra cá, é importante que aqui seja esse celeiro de dentro para fora, que as pessoas conheçam a partir da produção daqui, dos artistas, das modelos, dos estilistas, pra fora. É um espaço importante que está sendo construído”, ressaltou.

Considerando a indústria têxtil uma das mais poluentes do mundo, Vanda também destaca o caráter sustentável desses empreendimentos. “A nossa perspectiva de moda dá num caminho diferente dessa indústria de moda que tanto polui, que também se utiliza de trabalho escravo, a gente sabe que muitas marcas detêm essa mão de obra extremamente precarizada”, salienta.

“No Ateliê Derequine, por exemplo, é a minha família, outras mulheres da comunidade, outras parentas que estão costurando e a gente faz a divisão do que tá sendo vendido de forma igualitária. Além do mais a gente traz elementos da natureza para compor nossas peças, sementes naturais, isso diminui o impacto de certa forma, também trabalhamos com as sobras de tecido da própria indústria que polui, tentando diminuir esses impactos”, finaliza Vanda destacando a característica ecológica no Amazonas, na possibilidade de diminuir os impactos negativos que prejudicam a população.